ACEITAÇÃO
-Ei, é verdade que no bloco da Ivete só tem viado?
A pergunta foi feita a um folião do bloco em questão no sábado do Fortal, enquanto ele se dirigia para a concentração de onde o trio elétrico puxado pela musa baiana sairia. Quase ao mesmo tempo, já na tal concentração, duas foliãs do bloco puxado pelo Chiclete com Banana, ao passar por um grupo de rapazes vestidos com o abadá “da Ivete”, comentaram - sem fazer a menor questão de não serem ouvidas – “Sabia que no bloco da Ivete só tem gay?”.
Estes dois episódios que Cena G relata não foram isolados. Outros do gênero também ocorreram ao longo do percurso animado por Ivete Sangalo. Do alto do mais famoso camarote do carnaval fora da época de Fortaleza, quando os foliões do bloco entraram no “Corredor da Folia”, um rapaz não se conteve e disse, para o grupo de beldades de salto 15 que lhe cercava: “Rapaz, tem muito viado no mundo...”. Uma das moças do grupo, ajustando o top que costumizara da camiseta que dava acesso ao espaço vip, chocou-se: “Gente, olha aqueles dois gatos sarados ali de mãos dadas!!! Como é que pode?”. Uma de suas colegas, 1.200ml de silicone recém-colocados para “causar” na festa, apontou outros casais de rapazes, “se beijando na boca, imagina!”. Ao que a mais sensata do grupo, antevendo para onde a coisa descambaria, deu o salve geral providencial: “Ei, vocês estão loucas? Eles podem curtir o Fortal também, estão certos!”. Só então, as atenções voltaram-se para a óbvia estrela da micareta naquela noite, a cantora em cima do trio.
Mas o que tem, afinal, o “bloco da Ivete” para carregar essa fama? Só tem “viado” mesmo? É o único do Fortal que arrasta a comunidade GLBT (XYZ)? Nada disso. É óbvio que “tem viado” (e aqui Cena G, para não distoar, se vale da linguagem padrão dos que se assustaram com) em todos os outros blocos, no bloco puxado pela Banda Eva, no pelo Asa de Águia, pela dupla sertaneja e até mesmo no tal animado por Bell Marques e cia, famoso pelo clima de azaração hétero que corre solta, destino das duas amigas citadas no primeiro parágrafo da coluna. O diferencial do “bloco da Ivete” é que ele é inclusivo, como todos deveriam ser, simples assim.
O que o diferencia é que nele, sim é verdade, casais héteros se beijavam em meio a vários casais gays que também se beijavam, numa demonstração de civilidade e convivência pacífica que deveria ser o padrão. O que talvez o diferencie mais ainda é que muitos dos foliões do “bloco da Ivete”, ao entrar no tal “Corredor da Folia”, não fugiram das câmeras televisivas espalhadas pela avenida, nem tão pouco se intimidaram com este ou aquele olhar recriminador (até mesmo de espanto) que pudessem vir dos camarotes.
Aliás, para que se esconder quando o que se celebra é a felicidade? A alegria de ter um par para a folia, de apenas seguir o que manda um dos maiores sucessos da cantora quando diz que “comigo é na base do beijo, comigo é na base do amor”? Por que a máxima só valeria para os que se atraem por pessoas do sexo oposto?
O que se viu no sábado do Fortal foi só um reflexo dos tempos que vivemos, o da aceitação das múltiplas possibilidades de amar. Porque elas existem e não tem mais como ser ignoradas. Não à toa, findo o percurso do bloco, a energia proudtobe deslocou-se para a Arena Vip, onde Daniela Mercury fazia, no palco, um dos shows mais incríveis que Fortaleza já viu dela, e onde casais homoafetivos, na plateia, demonstravam afeto publicamente.
A propósito, e por falar nisso, voltemos ao folião que foi interpelado no caminho da concentração, cuja história abre essa coluna. Sabe o que ele respondeu ao rapaz que lhe perguntou se o bloco para o qual ele estava indo só “tinha viado”? “Sim. Só tem viado mesmo. Por quê? Você é um?”. Ao que o tal moço até então provocador, “inda tonto do que houvera, a cabeça em maresia”, como diria o grande poeta, levantou o polegar em sinal de afirmação, talvez mais surpreso que tudo em ver seu desejo, que julgava ultra-oculto, transparente no meio da multidão.
Freud, certamente, explica. Até a próxima semana.
Fonte: O Povo